Escrever-te, desculpa-me que o diga, apesar de constituir uma forma de nos ligarmos, é um aborrecimento para mim. A vontade de o fazer é um mero desejo de retomar-te, e só me assiste como derivação do facto de não estar contigo, agora como sempre, sempre, há demasiado tempo. Ainda vejo a parte de trás do teu corpo que se afasta, o teu corpo lento de ida breve, e há demasiado tempo, já, que me preparo para a tua deslumbrante volta. Adeus, dissemos nós, e daí para a folha branca, para um universo de ligação aberrante, pois entre as palavras não vejo os teus cabelos, nas janelas das letras não há sombras dos teus olhos, nas suas curvas e nuances não há latitudes nem longitudes de ti. Aborrece-me por isso. Uma carta o que é, senão um pobre elo comparado com ver-te, com ter-te, com ser-te, como só se é quando se pertence... Dentro dela, pelo seu longo, na sua história pequena de carta, de vida atropelada, de mundo estrangulado de limites, sinto-me sempre a avançar numa incontornável impotência em adorar-te devidamente, a mão assume como que o passo do cavaleiro que num cavalo de pau faz tardar o seu próprio desejo de conquista, o piloto que avista a meta tripulando uma cadeira de rodas triangulares... Não, escrever-te nunca! O que, de resto, te poderia dizer senão palavras? O teu lugar em mim é demasiado para caber em palavras, a tua existência em mim não me admite sequer a capacidade de as formar. Diante de ti sou analfabeto de expressões. Contigo, apenas no que não digo poderia existir um resíduo da explicação do que é sentir-te. Dizer-te que te amo seria como nada dizer. Dizer-te que te amo não seria mais que uma ínfima partícula do que gostaria de exprimir se dissesse que te amo, esforço inglório, desprezível, esgar risível onde as palavras perderiam o sentido mal se dissessem, traídas pela sua própria intransponível falta de competência. Não, palavras não, escrever-te nunca... Manchar assim a mácula da tua beleza, com modestos gatafunhos, com pretensiosos símbolos desconexos...? Não, palavras não... Cometer a afronta de dizer-te num poema, de desenhar-te em bons termos, sujar assim a poesia perfeita que tu és, tu, poema infinito...? Não, escrever-te nunca... Atrever-me a pôr-te nomes quando o mais belo dos adjectivos seria, se aplicado a ti, não mais que uma nódoa negra na tua beleza superior, na tua hercúlea sensibilidade, na invencível fragilidade da tua perfeição...? Dizer-te bela, linda, maravilhosa, soberba, suprema, universal...? Nunca! Nenhum destes termos estaria à tua altura, porque todo e qualquer predicado se torna ínfimo, ridículo diante de ti. Não, palavras não, escrever-te nunca... Porque a beleza é muda. Como tudo, aliás, o que na vida nos pede sentimento, é inexplicável, indizível. O poema mais belo constituirá uma homenagem, sem dúvida, mas jamais um retrato. Será, talvez, um esboço, mas nunca um desenho do que na essência é indesenhável. Cala-me sempre a tua beleza. Cala-me como tudo o que fascina, como no filme ruidoso em que uma súbita presença surge e sem voz de comando institui o silêncio. Por isso não, palavras não, dizer-te jamais... As palavras para a fogueira diante de ti. Os verbos para o inferno diante do teu gesto. És o desenho impossível, o limite do universo, o último número, a reunião de todas as estrelas que já existiram no espaço com aquelas que ainda apenas existirão... A tua forma é a própria representação física e química do topo do infinito. És impossível de completar, és-me toda, intensamente toda, és-me demais. És-me primeiro do que eu. És-me segundo. És-me o relógio que marca ao mesmo tempo todas as horas do mundo. Na minha vida inteira de assimilar-te és-me tanto a todo o instante, tanto que me sobras, que sobras ao todo em si mesmo. Não, escrever-te não, palavras nunca... Nada posso dizer-te. Nada tenho para dizer-te. Não tenho palavras perto de ti, a boca cega-se-me, em inversa proporção aos olhos que se abrem no pobre intento de te ver toda duma só vez. Não, este sufoco mágico de te amar não passa por dizer-te. Para dizer-te teria que ser como se dissesse o que jamais saberia dizer... Como se dissesse um desejo último de querer... Mas o que seria desejar que a minha noite fosse um mapa de mil céus e as estrelas os teus dias? Ou que o meu silêncio fosse um universo onde pujante me dizias? Ou ainda que os meus olhos fossem planetas nascidos dos teus veres? Ou até que o meu ser fosse a pátria perfeita de me seres? Nada, absolutamente nada diante de ti... Como nada significaria desejar que a minha alma fosse a cidade da tua alma, que o meu corpo fosse a casa do teu corpo... Não, palavras não. Para amar-te teria que ser com as minhas próprias mãos, com os meus próprios olhos explodindo nos teus, com o meu próprio e estúpido ser rastejante de te adorar. Sim, esse prazer inigualável de ser estúpido de ti... Essa entrega total e sublime do carácter e do último resquício de orgulho, o saboroso abandono à escravidão e ao capricho, o doce desvincular da derradeira partícula de dignidade, e toda a divina adoração por um teu gesto de paixão ou de desprezo... Ah, sim, a deliciosa desgraça do amor, onde se é nu de toda a morada, sem abrigo do mundo, desprovido do mero relevo duma linha de horizonte por onde estender outra aventura que não o vazio imenso de amar... Ah, sim, aí mesmo onde o trovão nasce sem nuvem e tem a cor das mil gargalhadas demoníacas que matam para sempre a solidão, essa estrada de pregos que varremos com o corpo debaixo duma torrencial chuva de alfinetes... Ah, sim, essa densa vida no descampado que é o amor, fora do alcance das palavras e onde só os gestos são imunes ao ridículo... Dizer-te não, palavras nunca... O que dizer, por exemplo, a um estranho se estivesses comigo? Bom dia? Mas como conseguiria esse reles cumprimento definir toda a grandeza desse dia se estivesses comigo, se todas as suas horas jamais chegariam para a enormidade dum dia assim... E que dizer num restaurante a um pobre empregado que, desconhecendo o calor da minha maravilha, me propusesse com simpatia uma refeição simples para partilharmos? Como explicar-lhe que mil sábios do mundo reunidos não conseguiriam jamais fabricar uma ementa que fizesse jus ao meu apetite, se estivesses comigo... Como alertar-lhe para a solução impossível dum prato com o teu nome, fusão suprema de todos os temperos do espaço total? Não, não há palavras para dizer-te... Amar-te é bastarem-me os sítios e a possibilidade de que estejas neles. É bastar-me o teu passo, mesmo de longe, repleto de indisfarçável beleza, próprio das criaturas indesenháveis. É ver que quando passas deixas cair mundo, não como quem perde mas como quem tem, e que as luzes se acendem para festejar os pássaros que nascem de existires. Amar-te é rir-me de ti como quem diz não, não estou a rir-me de ti, estou a rir-me de Ti! É a nenhuma surpresa com que noto os meus passos animados de procurar-te e encontrar-te nos lugares e, em lapsos de esquecer a face visível da tua beleza, constatar a tua outra beleza, aquela que por vezes de dentro vem à tona para se afirmar na mais forte, na mais plenamente sedutora. Amar-te é querer morrer de ti, é perguntar mas como morrer de ti se apenas sei viver de ti? É não conseguir viver sem te amar, sem as casas nocturnas que ergo para sonhar contigo, e sonhar e sonhar e sonhar, até sentir na pele um teu toque dado nesse sonho... Amar-te é ter-te ou não ter-te, é nada mais importar-me que o simples facto de te amar. Não, palavras não... Como dizer-te tudo isto, se o próprio exagero com que te sinto se me afigura impensável, se tudo isto é tão excessivo que, confesso, já não penso sequer em ti, a tua existência é a própria ideia impossível de pensar, a tua existência é tudo, é normal, simplesmente é ! Por isso não, palavras não, escrever-te nunca... Como dizer o morno silêncio da tua boca, a transbordante demora nos teus olhos, como definir o desenho da tua presença absoluta diante ou longe de mim... Essa presença que, num paradoxo só condizente com o amor, apenas é possível legendar sem palavras, no silêncio perfumado que nenhum mestre conseguiria interpretar. Como dizer-te tudo isto apenas com palavras? Não, palavras não. Escrever-te nunca!
18.1.10
Carta de silêncio
Escrever-te, desculpa-me que o diga, apesar de constituir uma forma de nos ligarmos, é um aborrecimento para mim. A vontade de o fazer é um mero desejo de retomar-te, e só me assiste como derivação do facto de não estar contigo, agora como sempre, sempre, há demasiado tempo. Ainda vejo a parte de trás do teu corpo que se afasta, o teu corpo lento de ida breve, e há demasiado tempo, já, que me preparo para a tua deslumbrante volta. Adeus, dissemos nós, e daí para a folha branca, para um universo de ligação aberrante, pois entre as palavras não vejo os teus cabelos, nas janelas das letras não há sombras dos teus olhos, nas suas curvas e nuances não há latitudes nem longitudes de ti. Aborrece-me por isso. Uma carta o que é, senão um pobre elo comparado com ver-te, com ter-te, com ser-te, como só se é quando se pertence... Dentro dela, pelo seu longo, na sua história pequena de carta, de vida atropelada, de mundo estrangulado de limites, sinto-me sempre a avançar numa incontornável impotência em adorar-te devidamente, a mão assume como que o passo do cavaleiro que num cavalo de pau faz tardar o seu próprio desejo de conquista, o piloto que avista a meta tripulando uma cadeira de rodas triangulares... Não, escrever-te nunca! O que, de resto, te poderia dizer senão palavras? O teu lugar em mim é demasiado para caber em palavras, a tua existência em mim não me admite sequer a capacidade de as formar. Diante de ti sou analfabeto de expressões. Contigo, apenas no que não digo poderia existir um resíduo da explicação do que é sentir-te. Dizer-te que te amo seria como nada dizer. Dizer-te que te amo não seria mais que uma ínfima partícula do que gostaria de exprimir se dissesse que te amo, esforço inglório, desprezível, esgar risível onde as palavras perderiam o sentido mal se dissessem, traídas pela sua própria intransponível falta de competência. Não, palavras não, escrever-te nunca... Manchar assim a mácula da tua beleza, com modestos gatafunhos, com pretensiosos símbolos desconexos...? Não, palavras não... Cometer a afronta de dizer-te num poema, de desenhar-te em bons termos, sujar assim a poesia perfeita que tu és, tu, poema infinito...? Não, escrever-te nunca... Atrever-me a pôr-te nomes quando o mais belo dos adjectivos seria, se aplicado a ti, não mais que uma nódoa negra na tua beleza superior, na tua hercúlea sensibilidade, na invencível fragilidade da tua perfeição...? Dizer-te bela, linda, maravilhosa, soberba, suprema, universal...? Nunca! Nenhum destes termos estaria à tua altura, porque todo e qualquer predicado se torna ínfimo, ridículo diante de ti. Não, palavras não, escrever-te nunca... Porque a beleza é muda. Como tudo, aliás, o que na vida nos pede sentimento, é inexplicável, indizível. O poema mais belo constituirá uma homenagem, sem dúvida, mas jamais um retrato. Será, talvez, um esboço, mas nunca um desenho do que na essência é indesenhável. Cala-me sempre a tua beleza. Cala-me como tudo o que fascina, como no filme ruidoso em que uma súbita presença surge e sem voz de comando institui o silêncio. Por isso não, palavras não, dizer-te jamais... As palavras para a fogueira diante de ti. Os verbos para o inferno diante do teu gesto. És o desenho impossível, o limite do universo, o último número, a reunião de todas as estrelas que já existiram no espaço com aquelas que ainda apenas existirão... A tua forma é a própria representação física e química do topo do infinito. És impossível de completar, és-me toda, intensamente toda, és-me demais. És-me primeiro do que eu. És-me segundo. És-me o relógio que marca ao mesmo tempo todas as horas do mundo. Na minha vida inteira de assimilar-te és-me tanto a todo o instante, tanto que me sobras, que sobras ao todo em si mesmo. Não, escrever-te não, palavras nunca... Nada posso dizer-te. Nada tenho para dizer-te. Não tenho palavras perto de ti, a boca cega-se-me, em inversa proporção aos olhos que se abrem no pobre intento de te ver toda duma só vez. Não, este sufoco mágico de te amar não passa por dizer-te. Para dizer-te teria que ser como se dissesse o que jamais saberia dizer... Como se dissesse um desejo último de querer... Mas o que seria desejar que a minha noite fosse um mapa de mil céus e as estrelas os teus dias? Ou que o meu silêncio fosse um universo onde pujante me dizias? Ou ainda que os meus olhos fossem planetas nascidos dos teus veres? Ou até que o meu ser fosse a pátria perfeita de me seres? Nada, absolutamente nada diante de ti... Como nada significaria desejar que a minha alma fosse a cidade da tua alma, que o meu corpo fosse a casa do teu corpo... Não, palavras não. Para amar-te teria que ser com as minhas próprias mãos, com os meus próprios olhos explodindo nos teus, com o meu próprio e estúpido ser rastejante de te adorar. Sim, esse prazer inigualável de ser estúpido de ti... Essa entrega total e sublime do carácter e do último resquício de orgulho, o saboroso abandono à escravidão e ao capricho, o doce desvincular da derradeira partícula de dignidade, e toda a divina adoração por um teu gesto de paixão ou de desprezo... Ah, sim, a deliciosa desgraça do amor, onde se é nu de toda a morada, sem abrigo do mundo, desprovido do mero relevo duma linha de horizonte por onde estender outra aventura que não o vazio imenso de amar... Ah, sim, aí mesmo onde o trovão nasce sem nuvem e tem a cor das mil gargalhadas demoníacas que matam para sempre a solidão, essa estrada de pregos que varremos com o corpo debaixo duma torrencial chuva de alfinetes... Ah, sim, essa densa vida no descampado que é o amor, fora do alcance das palavras e onde só os gestos são imunes ao ridículo... Dizer-te não, palavras nunca... O que dizer, por exemplo, a um estranho se estivesses comigo? Bom dia? Mas como conseguiria esse reles cumprimento definir toda a grandeza desse dia se estivesses comigo, se todas as suas horas jamais chegariam para a enormidade dum dia assim... E que dizer num restaurante a um pobre empregado que, desconhecendo o calor da minha maravilha, me propusesse com simpatia uma refeição simples para partilharmos? Como explicar-lhe que mil sábios do mundo reunidos não conseguiriam jamais fabricar uma ementa que fizesse jus ao meu apetite, se estivesses comigo... Como alertar-lhe para a solução impossível dum prato com o teu nome, fusão suprema de todos os temperos do espaço total? Não, não há palavras para dizer-te... Amar-te é bastarem-me os sítios e a possibilidade de que estejas neles. É bastar-me o teu passo, mesmo de longe, repleto de indisfarçável beleza, próprio das criaturas indesenháveis. É ver que quando passas deixas cair mundo, não como quem perde mas como quem tem, e que as luzes se acendem para festejar os pássaros que nascem de existires. Amar-te é rir-me de ti como quem diz não, não estou a rir-me de ti, estou a rir-me de Ti! É a nenhuma surpresa com que noto os meus passos animados de procurar-te e encontrar-te nos lugares e, em lapsos de esquecer a face visível da tua beleza, constatar a tua outra beleza, aquela que por vezes de dentro vem à tona para se afirmar na mais forte, na mais plenamente sedutora. Amar-te é querer morrer de ti, é perguntar mas como morrer de ti se apenas sei viver de ti? É não conseguir viver sem te amar, sem as casas nocturnas que ergo para sonhar contigo, e sonhar e sonhar e sonhar, até sentir na pele um teu toque dado nesse sonho... Amar-te é ter-te ou não ter-te, é nada mais importar-me que o simples facto de te amar. Não, palavras não... Como dizer-te tudo isto, se o próprio exagero com que te sinto se me afigura impensável, se tudo isto é tão excessivo que, confesso, já não penso sequer em ti, a tua existência é a própria ideia impossível de pensar, a tua existência é tudo, é normal, simplesmente é ! Por isso não, palavras não, escrever-te nunca... Como dizer o morno silêncio da tua boca, a transbordante demora nos teus olhos, como definir o desenho da tua presença absoluta diante ou longe de mim... Essa presença que, num paradoxo só condizente com o amor, apenas é possível legendar sem palavras, no silêncio perfumado que nenhum mestre conseguiria interpretar. Como dizer-te tudo isto apenas com palavras? Não, palavras não. Escrever-te nunca!
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4 comentários:
syderado, grande título para este blog, Picalima. A alegria de te voltar a ler, de saber que o teu estado de siderado constante não te priva da vida e do tempo em que às vezes comunicas com os outros, que bom e que bela carta foste resgatar ao tempo (1995?), por favor não pares, ou para, mas escreve, escreve por favor!
bom reencontrar-te, amigo!
Caminhante que sou da literatura,jamais tropecei em texto tão intenso...Também eu fiquei Siderada...Também eu não tanho palavras para exprimir a emoção que esta"não carta"derramou sobre mim...Só me atrevo a pedir o mesmo que o TT.
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