18.1.10

Carta de silêncio

















Escrever-te, desculpa-me que o diga, apesar de constituir uma forma de nos ligarmos, é um aborrecimento para mim. A vontade de o fazer é um mero desejo de retomar-te, e só me assiste como derivação do facto de não estar contigo, agora como sempre, sempre, há demasiado tempo. Ainda vejo a parte de trás do teu corpo que se afasta, o teu corpo lento de ida breve, e há demasiado tempo, já, que me preparo para a tua deslumbrante volta. Adeus, dissemos nós, e daí para a folha branca, para um universo de ligação aberrante, pois entre as palavras não vejo os teus cabelos, nas janelas das letras não há sombras dos teus olhos, nas suas curvas e nuances não há latitudes nem longitudes de ti. Aborrece-me por isso. Uma carta o que é, senão um pobre elo comparado com ver-te, com ter-te, com ser-te, como só se é quando se pertence... Dentro dela, pelo seu longo, na sua história pequena de carta, de vida atropelada, de mundo estrangulado de limites, sinto-me sempre a avançar numa incontornável impotência em adorar-te devidamente, a mão assume como que o passo do cavaleiro que num cavalo de pau faz tardar o seu próprio desejo de conquista, o piloto que avista a meta tripulando uma cadeira de rodas triangulares... Não, escrever-te nunca! O que, de resto, te poderia dizer senão palavras? O teu lugar em mim é demasiado para caber em palavras, a tua existência em mim não me admite sequer a capacidade de as formar. Diante de ti sou analfabeto de expressões. Contigo, apenas no que não digo poderia existir um resíduo da explicação do que é sentir-te. Dizer-te que te amo seria como nada dizer. Dizer-te que te amo não seria mais que uma ínfima partícula do que gostaria de exprimir se dissesse que te amo, esforço inglório, desprezível, esgar risível onde as palavras perderiam o sentido mal se dissessem, traídas pela sua própria intransponível falta de competência. Não, palavras não, escrever-te nunca... Manchar assim a mácula da tua beleza, com modestos gatafunhos, com pretensiosos símbolos desconexos...? Não, palavras não... Cometer a afronta de dizer-te num poema, de desenhar-te em bons termos, sujar assim a poesia perfeita que tu és, tu, poema infinito...? Não, escrever-te nunca... Atrever-me a pôr-te nomes quando o mais belo dos adjectivos seria, se aplicado a ti, não mais que uma nódoa negra na tua beleza superior, na tua hercúlea sensibilidade, na invencível fragilidade da tua perfeição...? Dizer-te bela, linda, maravilhosa, soberba, suprema, universal...? Nunca! Nenhum destes termos estaria à tua altura, porque todo e qualquer predicado se torna ínfimo, ridículo diante de ti. Não, palavras não, escrever-te nunca... Porque a beleza é muda. Como tudo, aliás, o que na vida nos pede sentimento, é inexplicável, indizível. O poema mais belo constituirá uma homenagem, sem dúvida, mas jamais um retrato. Será, talvez, um esboço, mas nunca um desenho do que na essência é indesenhável. Cala-me sempre a tua beleza. Cala-me como tudo o que fascina, como no filme ruidoso em que uma súbita presença surge e sem voz de comando institui o silêncio. Por isso não, palavras não, dizer-te jamais... As palavras para a fogueira diante de ti. Os verbos para o inferno diante do teu gesto. És o desenho impossível, o limite do universo, o último número, a reunião de todas as estrelas que já existiram no espaço com aquelas que ainda apenas existirão... A tua forma é a própria representação física e química do topo do infinito. És impossível de completar, és-me toda, intensamente toda, és-me demais. És-me primeiro do que eu. És-me segundo. És-me o relógio que marca ao mesmo tempo todas as horas do mundo. Na minha vida inteira de assimilar-te és-me tanto a todo o instante, tanto que me sobras, que sobras ao todo em si mesmo. Não, escrever-te não, palavras nunca... Nada posso dizer-te. Nada tenho para dizer-te. Não tenho palavras perto de ti, a boca cega-se-me, em inversa proporção aos olhos que se abrem no pobre intento de te ver toda duma só vez. Não, este sufoco mágico de te amar não passa por dizer-te. Para dizer-te teria que ser como se dissesse o que jamais saberia dizer... Como se dissesse um desejo último de querer... Mas o que seria desejar que a minha noite fosse um mapa de mil céus e as estrelas os teus dias? Ou que o meu silêncio fosse um universo onde pujante me dizias? Ou ainda que os meus olhos fossem planetas nascidos dos teus veres? Ou até que o meu ser fosse a pátria perfeita de me seres? Nada, absolutamente nada diante de ti... Como nada significaria desejar que a minha alma fosse a cidade da tua alma, que o meu corpo fosse a casa do teu corpo... Não, palavras não. Para amar-te teria que ser com as minhas próprias mãos, com os meus próprios olhos explodindo nos teus, com o meu próprio e estúpido ser rastejante de te adorar. Sim, esse prazer inigualável de ser estúpido de ti... Essa entrega total e sublime do carácter e do último resquício de orgulho, o saboroso abandono à escravidão e ao capricho, o doce desvincular da derradeira partícula de dignidade, e toda a divina adoração por um teu gesto de paixão ou de desprezo... Ah, sim, a deliciosa desgraça do amor, onde se é nu de toda a morada, sem abrigo do mundo, desprovido do mero relevo duma linha de horizonte por onde estender outra aventura que não o vazio imenso de amar... Ah, sim, aí mesmo onde o trovão nasce sem nuvem e tem a cor das mil gargalhadas demoníacas que matam para sempre a solidão, essa estrada de pregos que varremos com o corpo debaixo duma torrencial chuva de alfinetes... Ah, sim, essa densa vida no descampado que é o amor, fora do alcance das palavras e onde só os gestos são imunes ao ridículo... Dizer-te não, palavras nunca... O que dizer, por exemplo, a um estranho se estivesses comigo? Bom dia? Mas como conseguiria esse reles cumprimento definir toda a grandeza desse dia se estivesses comigo, se todas as suas horas jamais chegariam para a enormidade dum dia assim... E que dizer num restaurante a um pobre empregado que, desconhecendo o calor da minha maravilha, me propusesse com simpatia uma refeição simples para partilharmos? Como explicar-lhe que mil sábios do mundo reunidos não conseguiriam jamais fabricar uma ementa que fizesse jus ao meu apetite, se estivesses comigo... Como alertar-lhe para a solução impossível dum prato com o teu nome, fusão suprema de todos os temperos do espaço total? Não, não há palavras para dizer-te... Amar-te é bastarem-me os sítios e a possibilidade de que estejas neles. É bastar-me o teu passo, mesmo de longe, repleto de indisfarçável beleza, próprio das criaturas indesenháveis. É ver que quando passas deixas cair mundo, não como quem perde mas como quem tem, e que as luzes se acendem para festejar os pássaros que nascem de existires. Amar-te é rir-me de ti como quem diz não, não estou a rir-me de ti, estou a rir-me de Ti! É a nenhuma surpresa com que noto os meus passos animados de procurar-te e encontrar-te nos lugares e, em lapsos de esquecer a face visível da tua beleza, constatar a tua outra beleza, aquela que por vezes de dentro vem à tona para se afirmar na mais forte, na mais plenamente sedutora. Amar-te é querer morrer de ti, é perguntar mas como morrer de ti se apenas sei viver de ti? É não conseguir viver sem te amar, sem as casas nocturnas que ergo para sonhar contigo, e sonhar e sonhar e sonhar, até sentir na pele um teu toque dado nesse sonho... Amar-te é ter-te ou não ter-te, é nada mais importar-me que o simples facto de te amar. Não, palavras não... Como dizer-te tudo isto, se o próprio exagero com que te sinto se me afigura impensável, se tudo isto é tão excessivo que, confesso, já não penso sequer em ti, a tua existência é a própria ideia impossível de pensar, a tua existência é tudo, é normal, simplesmente é ! Por isso não, palavras não, escrever-te nunca... Como dizer o morno silêncio da tua boca, a transbordante demora nos teus olhos, como definir o desenho da tua presença absoluta diante ou longe de mim... Essa presença que, num paradoxo só condizente com o amor, apenas é possível legendar sem palavras, no silêncio perfumado que nenhum mestre conseguiria interpretar. Como dizer-te tudo isto apenas com palavras? Não, palavras não. Escrever-te nunca!  

4 comentários:

Tiago Taron disse...

syderado, grande título para este blog, Picalima. A alegria de te voltar a ler, de saber que o teu estado de siderado constante não te priva da vida e do tempo em que às vezes comunicas com os outros, que bom e que bela carta foste resgatar ao tempo (1995?), por favor não pares, ou para, mas escreve, escreve por favor!

picalima disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
picalima disse...

bom reencontrar-te, amigo!

Marilisa Crespo disse...

Caminhante que sou da literatura,jamais tropecei em texto tão intenso...Também eu fiquei Siderada...Também eu não tanho palavras para exprimir a emoção que esta"não carta"derramou sobre mim...Só me atrevo a pedir o mesmo que o TT.